Esse aí na foto é o singelo vulcão Merapi. Parece até alguma imagem tirada de Jaspion. Não, eu não tirei a foto pessoalmente. Ele explodiu da última vez em dezembro passado mas agora está quietinho - até quando, não se sabe. As pessoas de Java Central já se acostumaram a viver com um vulcão por perto.
Mas o centro de Java reserva mais do que um vulcão temperamental. Na verdade, apesar de Jacarta (no oeste da ilha) ser a capital, as belezas culturais e as tradições javanesas estão em sua maior parte no centro da ilha. Não sei qual é a noção de vocês sobre o tamanho de Java, mas a ilha tem basicamente a forma de um retângulo com apr. 100km de norte a sul e 1000km de leste a oeste. É bastante chão. Sendo assim, levei 10h pra chegar daqui de Bogor até Yogyakarta, considerada o coração da cultura javanesa - lá pertinho do Merapi.
A viagem de trem foi um martírio, mas valeu a pena. Basicamente, eu e Jubi deixamos pra comprar os tickets de trem na última hora e acabou que a única categoria disponível era a classe "povão". E, ah, viajando em pé, pois os assentos estavam esgotados. Nessa categoria, mesmo depois de lotar eles continuam vendendo passagem, e você que se vire lá sem assento.
Primeiro tentei dormir sentado no chão do corredor, com as costas na lateral de um dos assentos e as pernas estiradas cortando o corredor. Não prestou. Quando passou o primeiro baleiro, parecia que eu estava pagando um boquete. Decidi me espichar de vez, com as costas no chão em cima de um jornal. Em tempo lotou de gente no corredor, e poucas horas dali já estava eu quase dormindo "de conchinha" com uma tia. E os vendedores passando a passos de garça pra não pisar no povo. Foi memorável. Em alguma religião deve ser ritual de humildade você ter vendedores sujos, pobres e de pés descalços passando sobre você. Dez, vinte... Confesso, não me pisaram nenhuma vez, mas os gritos de venda durante a noite inteira davam nos nervos. Você lutando pra cair no sono (obs: as luzes vão acesas a noite inteira) e o indivíduo prum lado e pro outro gritando
kópiiiiiiiiii (café),
tahuuuuuuu (tofu),
mie ayaaaaaam (macarrão com galinha). É nessas horas que faltava uma versão indonésia de Iara, minha vizinha lá de Feira, pra anunciar: "Moço, ninguém aqui quer café não! O senhor não tá vendo que o povo quer é dormir?!". Mas aí você pára pra sacar:
Putz, o cara tá aqui vendendo café à meia-noite pra tentar arranjar um trocado de nada e sobreviver? E eu reclamando porque às vezes estou no batente até depois das 6...
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O trem e o povo já de manhãzinha, alguns ainda espichados no chão. |
Chegando às 6 da manhã em Yogyakarta, estávamos mortos. (Quem conseguiu dormir? No máximo cochiladas de meia hora). Iqbal, um amigo de Jubi, foi nos pegar. Dali fomos na casa dele, deixamos as coisas, e fomos ver a cidade. Como eu disse, Yogyakarta é a capital cultural de Java, e isso inclui os famosos
batik, motivos das roupas javanesas e que aqui todo mundo usa.
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Batik é parte da tradição javanesa. Trata-se de motivos florais ou de padrões de desenho diversos, como esse da camisa do homem na foto. Quase todo mundo em Java se veste diariamente (ou quase que diariamente) com roupas assim. |
O mais interessante dos batik é que, tradicionalmente, eles são desenhados à mão, como faz essa senhora aí abaixo.
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O batik tradicionalmente se faz com uma pinça e tinta, e vai sendo desenhado à mão. Hoje em dia, claro, há indústria que faz isso no computador, mas os artesanais são muito mais valorizados - e, claro, são bem mais caros. |
Yogyakarta é o paraíso dos batik, e isso vale pra qualquer coisa - toalha de mesa, etc. Yogyakarta é também centro da dança e música javanesa. Tradicionalmente, é um canto que lembra um pouco aqueles cantos chineses ou japoneses (pra quem já viu em filme) e que parecem um lamento.
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Esse vô da foto tocava o instrumento de corda e cantava. Parecia até qualidade de studio. Show de bola (ou melhor, show de corda e de voz). |
Pra quem notou ali na foto acima, ao lado do vô musical há um quadro. Ali é ninguém menos que o sultão. É, Yogyakarta tem um sultão. Antes de a Indonésia ser independente (guerra durante 1945-1949), ela era colônia da Holanda; antes de ser colônia da Holanda, havia muitos reinos e sultanatos de diferentes tradições e através das diferentes ilhas que formam o país (daí haver ainda vários conflitos étnicos na Indonésia). Vários lugares ainda mantêm as famílias dos reis e sultões. Embora esses não tenham mais o poder político, ainda são muito apreciados - e normalmente são ricos e tem certo poder de manobra social. Esse é especialmente o caso em Yogyakarta, onde o povo é bastante respeitoso com seu sultão.
Se a gente voltar um pouco mais no tempo, antes de essa região de converter ao Islã (o que ocorrey ao longo dos anos de 1200-1600), aqui eram reinos budistas e hinduístas - que são religiões muito mais antigas. São dessa época anterior ao Islã os monumentos mais impressionantes que permanecem no centro de Java. Fui visitar alguns deles.
O primeiro deles é
Prambanan, um templo hindu do século IX, dedicado às três principais divindades hindus: Vishnu, Shiva e Brahma. (Em algumas visões, é como a santíssima trindade no Cristianismo: três faces de uma entidade só. Mas essa é uma discussão teológica mais longa...). O templo principal tem 47m de altura, e os interiores têm estátuas dos deuses com seus 3m. Entrar neles é uma sensação bem Indiana Jones.
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Templo hindu de Prambanan, em Java Central. Do século IX. |
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Adentrando um dos templos de Prambanan, em Java Central. |
Por fim, no dia seguinte, fomos visitar um dos outros pontos marcantes da região, desta vez um templo budista,
Borobudur. Borobudur é do século VIII, portanto mais antigo que Prambanan, e tem um conceito bem interessante: são nove plataformas formando uma espécie de pirâmide, em cada uma delas há ilustrações esculpidas mostrando aspectos da vida de Buda e, em geral, da vida humana. A idéia é que, de baixo pra cima, as coisas vão se "elevando". Enquanto que na base são ilustrações de cenas mais carnais, mais pra cima as ilustrações vão se espiritualizando e no topo você tem o nirvana.
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Pra entrar na área do templo, é preciso usar o sarong, uma roupa típica do sudeste asiático. |
Como eu disse, a viagem de trem valeu a pena. Mesmo assim, como na segunda-feira eu tinha compromissos e não podia me dar ao luxo de mais uma noite sem dormir, voltamos de avião. Ainda demos boas voltas pela cidade, tomei muito suco de graviola, e comprei feito mulher de marido rico. Não sei onde é que vai caber tudo, já que - ao contrário da Índia - aqui eu estou com um limite de bagagem bem mais apertado. Mas não quero nem saber, largo pra trás coisas ordinárias (tipo toalha de banho) pra fazer espaço. Vou descobrir logo logo se as minhas mochilas cabem ou não cabem tudo. Amanhã voo pra Bali, que será a etapa dessa estadia na Indonésia. Deixo vocês com algumas fotos de Java Central.
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Amanhecer sobre os campos de arroz em Java Central. Tirada do trem. |
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O Merapi, mais quietinho. De várias partes da cidade dá pra avistá-lo no horizonte. Esta foto não fui eu que tirei, mas dá uma idéia. |
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Em Prambanan. Jubi é a de véu cinza. |
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Vista do alto de Borobudur. |
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Prato tradicional de Yogyakarta: Jaca verde cozida no leite de côco com pimentas, ao lado de acompanhamentos. Uma delícia, na verdade! |